"O escravo que mata seu senhor, o faz sempre em legítima defesa". Essa frase resume o pensamento de um homem que fez da sua vida um palco de luta, e do Direito o seu instrumento de defesa da dignidade da população negra escravizada. Luiz Gama era um homem negro, baiano, ex-escravizado em São Paulo, liberto por suas próprias mãos, amante da justiça , orgulhoso de sua raça, pioneiro na construção da afrocentricidade do Direito Brasileiro.
"Durante todo o tempo de amanuense, Luiz Gama serviu no gabinete do Conselheiro Furtado de Mendonça, delegado de polícia e também mestre da Faculdade de Direito de São Paulo. Teve acesso à biblioteca do Conselheiro e nela Luiz Gama iniciou a mais inacreditável cultura jurídica autodidata que se tem memória. Tornou-se rapidamente um homem de formação erudita. Não lhe tendo sido possível fazer o curso jurídico na Faculdade, tornou-se um advogado provisionado e um causídico temido e admirado nos Tribunais do Estado de São Paulo". ( Trecho do Livro "Dois Negros Libertários - Luiz Gama e Abdias do Nascimento" )
Luiz Gama tentou fazer cursar a Faculdade de Direito de São Paulo mas foi barrado pelo racismo. Sua presença não foi aceita por ele ser negro. Isso demonstra que mesmo os negros livres não eram tratados como cidadãos iguais aos brancos, e que a carta de alforria não foi a chave para a cidadania plena da população negra escravizada. Da mesma forma, a nossa "alforria contemporânea" chamada Constituição Federal de 1988 não é a chave de nossa cidadania plena e nunca será caso não estejamos comprometidos em denegrir essa Constituição, as leis infraconstitucionais e as que virão.
Para escurecer melhor a atuação desse herói na defasa da dignidade negra, abaixo transcrevo um capítulo do livro "Luiz Gama - o libertador de escravos e sua mãe libertária Luiza Mahin" de Mouzar Benedito.
"Luiz Gama mostrando habilidade e conhecimento jurídico, passou a usar essa lei feita apenas "para inglês ver". E vencia sempre, com uma argumentação forte. Suas intervenções, sua fala, suas arguumentações eram famosas. Os advogados dos escravocratas tentavam convencer os juízes que a lei de 1831 era letra morta, não valia mais. Mais Luiz Gama provava que ela nunca foi revogada e que se não era aplicada era por cumplicidade de certos agentes da Justiça com os senhores de escravos e com o regime escravagista.
Mas ele não defendia só esses escravos contrabandeados. Defendia também os que fugiam dos seus senhores, e muitas vezes conseguia sua libertação, e ainda aqueles que conseguiam o dinheiro para comprar sua alforria, mas mesmo assim o senhor não admitia sua libertação. E depois de conseguir sua libertaçção. E depois de conseguir a alforria, ajudava os ex-escravos a sobreviver dignamente, a arrumar trabalho. Usava todos os meios possíveis em sua luta. Um deles foi entrar na maçonaria, onde conseguiu meios e apoio para libertar escravos e ajuda-los depois. Chegou a ser venerável de uma loja maçônica.
Um dia Luiz Gama estava em seu escritório e entrou um negro que tinha dinheiro pra comprar sua liberdade, e pediu que ele o alforriasse. Em seguida entrou no escritório o próprio senhor do escravo. Surpresa! Ele era um amigo de Luiz Gama. Não era uma má pessoa, era conseiderado um bom homem, e estava inquieto, triste eabatido, pois tratava bem o escravo. Conforme dizia, e o escravo não negava, ele o tratava mais como um pai, sempre foi bom, e não sabia porque o homem queria abandoná-lo. Argumentou inclusive que o escravo vivia muito bem com ele e sozinho poderia ser infeliz, poderia não viver tão bem.
O escravo não respondia e ele não se conformava. Perguntava ao cativo o que lhe faltava em sua casa, insistia em perguntar o motivo para abandoná-lo. Foi Luiz Gama quem respondeu no lugar do escravo: "Falta-lhe o direito de ser infeliz onde, quando e como queira". E procedeu à libertação do negro.
Num mundo em que os senhores comumente torturavam escravos até à morte e tudo ficava como um acidente de percurso, quando acontecia o contrário, de escravos reagirem e matarem um senhor, o mundo vinha abaixo. A violência do senhor contra o escravo era "normal", ninguém ligava, mas uma eventual violência doe escravo contra o senhor era inadmissível, uma coisa a ser punida com mais violência ainda, um horror! Os "homens de bem" que não viam prolema nenhum na violência contra os escravos, se horrorizavam nessas ocasiões.
Certa vez, o filho de um fazendeiro do município de Entre Rios no Rio de Janeiro foi assassinado por 4 escravos e , depois de presos, cerca de 300 homens invadiram a cadeia e os estraçalharam, mortos com todo o sadismo possível. Claro que o destaque na imprensa foi a morte do branco.
Na Gazeta do Povo, do jornalista Ferreira Menezes, saiu uma matéria contando como foi o crime. Luiz Gama escreveu a ele uma longa carta, defendo a violência justa, originada da reação da vítima da escravidão, contra a violência injusta, que era a escravidão, os maus-tratos e os assassinatos de escravos. Em que diz num trecho: "O escravo que mata o senhor, que cumpre uma prescrição inevitável do direito natural, e o povo indigno que assassina heróis, jamais se confundirão".
Depois disso a carta continua lembrando com raiva e ironia que "Milhões de homens livres, nascidos como feras ou como anjos, nas fúlgidas areais da Africa, roubados e escravizados, azzorragados, mutilados, arrastados neste país clássico da sagrada liberdade, assassinados impunemente, sem direitos, sem família, sem pátria, sem religião, vendidos como bestas, espoliados em seu trabalho, transformados em máquinas, condenados à luta de todas as horas e de todos os dias, de todos os momentos, em proveito de especuladores cínicos, de ladrões impudicos, de salteadores sem nome, que tudo isso sofreram e sofrem, em face de uma sociedade opulenta, do mais sábio dos monarcas, à luz divina da santa religião católica, apostólica, romana, diante do mais generoso e do mais interessado dos povos", e continua descrevendo a condição a que os africanos foram submetidos, para depois sair em defesa deles:
"Quando, porém, por uma força invencível, por um ímpeto indomável, por um movimento soberano do instinto revoltado, levantam-se como a razão e matam o senhor, como Lusbel mataria Deus, são metidos no cárcere; e aí a virtude exaspera-se, a piedade contrai-se, a liberdade confrange-se, a indignação referve, o patriotismo arma-se: 300 cidadãos congregam-se, ajustam-se, marcham diretos ao cárcere: e aí (ó!, é preciso que o mundo inteiro aplauda) a faca, a pau, a enxada, a machado, matam valentemente a 4 homens; menos ainda, a 4 negros; ou ainda menos; a 4 escravos, manietados numa prisão. (...) Mais glorioso é morrer livre, numa forca, ou dilacerado pelos cães, na praça pública, do que banquetear-se com os Neros, na escravidão".
Mas a carta vai além, contandopor exemplo, sobre um escravo que tentara fugir várias vezes, em Limeira e recebeu o castigo que o senhor julgou merecido, inclusive para que as tentativas de fuga não incentivassem outros cativos: "O escravo foi amarrado, despido, conduzido ao seio do cafezal, entre o bando, mudo, escuro, taciturno... (...). Fizeram-no deitar, e cortaram-no a chicote, por todas as partes do corpo: o negro transformou-se m lázaro, o que era preto se tornou vermelho. Envolveram-no em trapos...Irrigaram-no de querosene, deitaram-lhe fogo...Auto-de-fé agrário! (...) Isso tudo consta de um auto, de um processo formal; está arquivado em cartório, enquanto o seu autor, rico, livre, poderoso, respeitado, entre sinceras homenagens, passeia ufano por entre seus iguais".
Em outra ocasião, defendendo um escravo que assassinou seu senhor, Luiz Gama disse solenemente:"Para o coração não há códigos; e se a piedade humana e a caridade cristã se devem enclausurar no peito de cada um, sem se manifestarem por atos, em verdade vos digo aqui, afrontando a lei, que todo o escravo que assassina o seu senhor, pratica um ato de legítima defesa".
Segundo alguns autores sua frase teria sido um pouco diferente: "O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa". A frase teria sido pronunciada durante um júri em Araraquara e provocado tumulto, a ponto do presidente do júri ter suspendido a sessão.
Moura Benedito em "Luiz Gama - o libertador de escravos e sua mãe libertária Luíza Mahin"
Imaginem, se esta pessoa ex-escravizada, vivendo no contexto social e histórico da escravização, mesmo sem o diploma de Direito construiu uma tese afrocentrado no Direito, por que motivo nós não conseguiríamos ? Que a garra e a genialidade de Luiz Gama nos inspire nessa caminhada, nos fazendo refletir sobre nosso papel no uso do Direito como meio de emancipação da população afro-brasileira. Atentos a mensagem que nos deixou em forma de ações, atitudes e poesia sobre a necessidade de afrocentrar o Direito:
"Se dormem de belor encapotados
Roídos de gusano, esfarrapados,
Nossas Leis, sentinelas vigilantes,
Desempregados remidos e tratantes,
Se o júri criminal, da nossa terra,
Postergando o direito sempre aberra
Punindo com rigor pobres mofinos
E dando liberdade aos assassinos,
Chiltn, pio leitor, não digas nada,
A Lei, cá no Brasil, é patuscada!"
"Não tolero magistrado
Que do brio descuidado
Vende a lei, trai a justiça
-Faz a todos injustiça-
Com rigor deprime o pobre
Presta abrigo ao rico, ao nobre
E só acha horrendo crime
No mendigo que deprime"
Até quando ?